22 Dezembro 2020
Um verdadeiro construtor de pontes, um pontífice. Assim poderíamos definir o Papa Francisco, algo que ele mais uma vez expressa na mensagem para a celebração do 54º Dia Mundial da Paz, a ser realizado em 1º de janeiro de 2021, que se intitula "A cultura do cuidado como percurso de paz". Para começar, o Papa deseja "progredir no caminho da fraternidade, da justiça e da paz entre as pessoas, as comunidades, os povos e os Estados".
A reportagem é de Luis Miguel Modino.
Ele o faz em um momento em que o mundo está passando "pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenômeno plurissetorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, econômica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incômodos". Em suas palavras ele diz que pensa "em primeiro lugar, naqueles que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho". Ele lembra aqueles que fizeram um esforço especial neste tempo de pandemia e pede garantia de acesso às vacinas, denunciando que " ao lado de numerosos testemunhos de caridade e solidariedade, infelizmente ganham novo impulso várias formas de nacionalismo, racismo, xenofobia e também guerras e conflitos que semeiam morte e destruição".
Diante das palavras de alguém que se tornou um dos grandes líderes mundiais, dedicando-se de corpo e alma a encontrar formas de resolver uma das maiores crises da história moderna, nos encontramos com a atitude de outros líderes que, desde o início, ignoraram o sofrimento do povo. Os exemplos mais claros desta atitude podem ser encontrados em Donald Trump e seu fiel lacaio Jair Bolsonaro. O primeiro já está arrumando sua mala para deixar a Casa Branca, enquanto o segundo, se nada mudar, continuará por pelo menos dois anos como presidente do Brasil.
O presidente brasileiro desde o primeiro momento foi contra o isolamento social, dizendo abertamente que nada tinha a ver com as mortes, que todos nós temos que morrer um dia, ele fez todo o possível para reduzir a ajuda emergencial aos mais pobres, que eles não vão receber a partir de janeiro, o que vai provocar uma grave crise social em um país onde o trabalho informal, dificultado neste tempo de pandemia, é a principal fonte de renda para uma boa parte da população.
A mesma posição está sendo mostrada em relação à vacina, algo em cuja universalidade o Papa Francisco tem insistido. Há várias semanas, a vacina tem sido objeto de uma disputa política entre o presidente brasileiro e os governadores de vários estados, incluindo o Supremo Tribunal Federal, que decidiu que ela é obrigatória. Bolsonaro se recusa a ser vacinado e disse não entender a pressa com a vacina, pois no Brasil a pandemia já está chegando ao fim, o que é negado pelos números, que ameaçam uma segunda onda mais letal. O Brasil é o país com o terceiro maior número de contágios, com mais de 7,2 milhões, e o segundo maior número de mortes, com previsões de mais de 200.000 falecidos nos primeiros dias de 2021.
Em sua mensagem, o Papa Francisco enfatiza "a importância de cuidarmos uns dos outros e da criação a fim de se construir uma sociedade alicerçada em relações de fraternidade", um caminho totalmente diferente do presidente brasileiro, expoente claro da "cultura da indiferença, do descarte e do conflito, que hoje muitas vezes parece prevalecer". De fato, desde sua chegada ao poder em 1º de janeiro de 2019, o Brasil se tornou um país fortemente polarizado, criando um clima social de confronto, o que complica ainda mais a grave crise que o país está atravessando.
Apesar de existirem grupos católicos claramente alinhados com o atual presidente, a posição da Igreja é de oposição às políticas que aumentaram a divisão social tradicionalmente presente na sociedade brasileira. A carta ao Povo de Deus, assinada por 152 bispos, publicada em agosto e que mais tarde recebeu grande apoio de outros grupos da igreja, critica abertamente as políticas do governo atual, a serviço de uma economia que mata.
Na semana passada, o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, denunciou que, diante da pandemia, "a seriedade foi subestimada e as medidas adotadas pelos órgãos governamentais ignoraram as preciosas contribuições do campo científico", algo que pode ser visto como um julgamento da posição adotada pelo presidente do país, que também deveria assumir "a necessidade de um programa de vacinação consistente, exigindo a superação de desgovernos e politizações abomináveis".
A mensagem do Papa Francisco enfatiza a necessidade de cuidar da criação e dos irmãos, algo que foi quebrado por Caim, pois, como ele afirma em Laudato Si', "o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros". A destruição da Amazônia atingiu limites inaceitáveis nos últimos dois anos, ao que se soma a perseguição aberta aos povos indígenas, aos quais o presidente brasileiro quer impor o modelo capitalista ocidental. Alguém que usou "Deus acima de tudo" como seu slogan de campanha deveria retomar a tradição profética, lembrada pelo Papa em sua mensagem, que promove "justiça para os pobres, que, pela sua vulnerabilidade e falta de poder, são ouvidos só por Deus, que cuida deles".
Cuidar dos outros é algo que sustenta o ministério de Jesus e deve estar presente na vida de seus seguidores, recorda-nos Francisco. Em sua reflexão, que tem como ponto de partida a doutrina social da Igreja como fundamento da cultura do cuidado, ele destaca a necessidade da promoção dos direitos humanos, algo que é constantemente atacado por Bolsonaro, do bem comum, o que contrasta com a destruição do aparelho do Estado e das políticas públicas, especialmente no campo da educação e da saúde, que está sendo instaurado no Brasil.
O mesmo pode ser dito sobre a solidariedade, que "ajuda-nos a ver o outro – quer como pessoa quer, em sentido lato, como povo ou nação – não como um dado estatístico, nem como meio a usar e depois descartar quando já não for útil, mas como nosso próximo, companheiro de viagem", nas palavras do Papa Francisco. A indiferença do atual presidente brasileiro em relação às vítimas da pandemia é um claro exemplo de atitude contrária ao que é defendido pelo pontífice. O mesmo pode ser dito em relação ao cuidado e proteção da criação, já que as queimadas na Amazônia, o desmatamento ou a mineração legal e ilegal são situações em que o governo brasileiro nada faz, para não dizer que apoia e incentiva.
Diante desta situação, o Papa fala de "a bússola para um rumo comum", que permite "estimar o valor e a dignidade de cada pessoa, agir conjunta e solidariamente em prol do bem comum", com o objetivo de "superar tantas desigualdades sociais", uma necessidade mais que urgente em um Brasil cada vez mais desigual. Portanto, a necessidade de "educar em ordem à cultura do cuidado", na família, nas religiões, algo que contrasta com a denúncia que os 152 bispos fizeram em sua carta, pois no Brasil, "a religião também é usada para manipular sentimentos e crenças, para provocar divisões, espalhar o ódio, criar tensões entre as igrejas e seus líderes". Não esqueçamos que "não há paz sem a cultura do cuidado", que exige "percursos de paz que levem a cicatrizar as feridas", cada vez mais abertas no Brasil, onde os sentimentos de "fraternidade e solidariedade, de apoio mútuo e acolhimento recíproco" foram abandonados.
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Diante do “não quero nem saber” de Bolsonaro, Papa Francisco propõe a cultura do cuidado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU